Monday, September 03, 2007

as formas do desejo

Gostaria que estas poucas palavras (sobre um assunto de que, vocês, meus confrades percebem muito mais e no qual têm muito mais experiência do que eu) espalhassem alguma escuridão em torno delas próprias. Escrevo-as na esperança que as iluminem com as vossas.

Refiro-me à oração. Palavra inestética, torpe, inerte, triste. «Orar» já me soa melhor. «Rezar» já soa a corruptela. De quê? Sei lá eu. São os afectos que as palavras inspiram. Quem as trabalha não gosta de as ver tão envelhecidas e fracas.

Mas, afectos à parte (o que é difícil, se não impossível, conseguir), o que é rezar?

Partilho com Espinosa a convicção de que o homem é essencialmente desejo. Ele diz mais: que a sua essência é desejo, ou seja, que o homem se define como desejo. Que Deus, ou a criação humana de Deus, venha no seguimento da necessidade de satisfazer esse desejo é quase uma inevitabilidade. Pode é não se chegar a chamá-lo pelo nome, ou dar-lhe outro nome. «Automóvel», por exemplo. «Carreira, família, felicidade, amor», são outros exemplos.

Rezar será, então, expressar o desejo. Endereçá-lo. Lançar a corda. Esperar que a acção da palavra (de socorro, de pedido, enfim, de desejo) tenha o seu efeito. A fé no poder mágico da palavra anda por aqui bem viva. Como na poesia, de resto. Ou na visita a um canceroso terminal que consegue sorrir graças à palavra do visitante. Os sofistas não eram tão maus como os pintam: eles também diziam que as palavras têm o poder de curar. Para além de terem o poder oposto. Não é por acaso que nas orações também há invejas, desejos de morte, infelicidade pela felicidade do outro... A despropósito, ou talvez não: Jesus era um belo sofista. Mas dos bons. Zinhos.

Mas, se rezar é expressar o desejo, desejamos o quê. Agostinho dizia que Deus. Mas já vimos que Deus é apenas um nome entre outros possíveis, uma forma (pretensamente englobante e unificadora) do desejo. Mas Agostinho diz mais: que o nosso coração anda inquieto. Ora, um coração inquieto é um coração anelante. Desejo é inquietude. Então, desejamos repouso, paz. O que lembra o «rest in peace». (Pôça, antes a inquietude!)

Claro que a paz que se pretende também pode ser a do equilíbrio: controlar o desejo, eis o subtil desígnio dos orantes mais inquietos. Há também os que não pretendem controlá-lo, mas exacerbá-lo. Rezar é então quase uma forma fascinada de conhecimento. O possível. Um tactear activo o futuro. Penso na figura da promessa (à Virgem, ao santo, ao santinho, a Deus, ao que for). O comércio com a entidade que pode dar o que se deseja é já da ordem do delírio (põe o orante fora de si); mas é um delírio eficaz: a carne sente que algo se está a passar já. A carne sente: logo é verdadeiro. Entenda-se verdade como interesse e interesse como a forma de nos sentirmos dentro do Ser, a-ser, em-movimento (inter-esse). Os sacrifícios (físicos ou económicos) são meios para a paz. As formas em carne viva do desejo. E o cumprimento dele, em grande medida. A medida da fé, ou da convicção, a medida da falha colmatada. Alcançar implica sacrifício, castigo, se necessário for. São homens de acção os que prometem a Deus. Ou à mulher que traem.

Mas rezar não pode ser outra coisa? Os místicos tinham interesse, ou o seu interesse era o Nada, a fusão no Todo? Os místicos são seres hiper-eróticos, basta lê-los. O corpo vinga-se sempre quando o queremos esquecer: e o corpo é a sede do desejo. Porque ser corpo é ser necessitado, frágil, à espera do equilíbrio homeostático.

Mas rezar pode ser louvar! Ora aí está um filão interessante. Louvar é vibrar, ser alegre; e ser alegre, outra vez Espinosa, é ser mais perfeito, estar mais completo, sentir a paz de se ser maior do que se esperava. E só se pode ser maior aberto, impuro, misturado com o que está fora, perdendo a identidade soberana do que pede. É uma paz pujante, esta, oposta à dos cemitérios, de que falava há pouco. Louva-se pouco neste mundo e quando se louva é, o mais das vezes, para polir sapatos ou vaidade alheia. É claro que isso traz as suas benesses por acréscimo. Mas louvar pode ser a vibração de ser frágil e portanto sensível à fragilidade do corpo-a-ser alheio. Um corpo rígido, encerrado na sua dureza, não vibra, não dança. É escusado levá-lo a um concerto de música, escusado expô-lo à influência dos sátiros. Louvar é dizer sim, é levar afecto e ser lugar de afecto, é levar o desejo a uma forma-outra, aceitação da metamorfose contínua, à forma da realização pelo ser. Do próprio e do próximo. É abençoar, bem querer, a si, ao outro. Desejar pode ser o movimento da mão para a posse, a rapina; ou, então, o movimento da mão para o cuidado no respeito pela liberdade. Mas a liberdade ou é investida (Levinas), comprometida no movimento constante da diferença, ou não é liberdade. A liberdade do libertino dá tesão, mas é uma liberdade de pedra cadente. Só é livre até ao chão. Ou pensa que é. O libertino não dança, estrebucha. E a dança é talvez a mais bela forma de louvor, de celebrar la joie de vivre.

Rezar enquanto louvor é estar nu e louvar a nudez alheia. Vibrar com a fragilidade sem desejar a destruição, levar de vencida, ou conquistar. É ver o outro à nossa imagem e semelhança (o que acontece sempre). Mas pela sintonia do desarme e da confiança. Que tem Deus a ver com isto? Nada. Ou tudo. Não conheço Deus. Só conheço homens, mulheres e crianças. E todos somos crianças no escuro.